Justiça amplia uso do FGTS e autoriza saque para fertilização in vitro em caso de infertilidade grave
Decisão do TRF-3 marca precedente relevante ao permitir liberação do fundo para tratamento de fertilidade, reconhecendo o direito à saúde reprodutiva como expressão da dignidade humana

Em uma decisão inédita que pode influenciar milhares de brasileiros, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) autorizou uma trabalhadora de 38 anos a sacar o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) para financiar um tratamento de fertilização in vitro. O caso, que gira em torno do conceito ampliado de saúde e dignidade humana, coloca em evidência a importância da Justiça como ferramenta de garantia de direitos reprodutivos — especialmente das mulheres.
A autora da ação apresentou diagnóstico médico de infertilidade primária e baixa reserva ovariana — condição que reduz significativamente as chances de gravidez natural. A paciente, segundo documentos juntados ao processo, já havia tentado engravidar por métodos naturais sem sucesso e enfrentava o avanço da idade fértil como um fator agravante.
Ao analisar o caso, o TRF-3 entendeu que o uso do FGTS não deve se restringir às doenças listadas em norma administrativa da Caixa Econômica Federal. Em seu voto, a relatora do processo destacou que a saúde reprodutiva integra o rol de direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal, como o direito à saúde, à vida e à dignidade humana.
“Estamos diante de uma condição de saúde comprovada por laudo médico, que compromete um direito essencial: o de constituir família. Negar o acesso ao tratamento significa excluir uma mulher de uma experiência central de sua vida, por barreiras econômicas que o próprio fundo pode solucionar”, diz a decisão.
Decisão reforça jurisprudência sobre doenças não listadas
Para o advogado Elton Fernandes, especialista em ações envolvendo planos de saúde e autor da defesa, a decisão reforça uma jurisprudência crescente: a de que o rol de doenças que permitem o saque do FGTS não é taxativo.
“A Justiça tem consolidado o entendimento de que o FGTS pode — e deve — ser acessado em situações de saúde graves, ainda que não listadas expressamente. A infertilidade, quando clínico-patológica, é uma dessas situações”, afirma.
No entanto, o advogado alerta: a decisão não significa que todos os pedidos serão automaticamente aceitos. É imprescindível a apresentação de laudos médicos detalhados que indiquem a necessidade do tratamento, seu caráter urgente e a ausência de alternativas terapêuticas menos onerosas.
A Caixa Econômica Federal recorreu da decisão, argumentando que o caso não se enquadra nas hipóteses legais para liberação do fundo. Alegou ainda que uma decisão favorável abriria precedentes para inúmeros pedidos similares. O recurso foi negado. Procurada pela reportagem, a instituição financeira informou, por meio de nota, que “não comenta ações judiciais em andamento”.
O FGTS e sua evolução histórica: de direito trabalhista a instrumento social
Criado em 1966 como uma alternativa à estabilidade no emprego, o FGTS teve, inicialmente, uso restrito a demissões sem justa causa e aquisição da casa própria. A abertura para saques por motivos de saúde veio somente em 1994, com os primeiros casos de câncer. Posteriormente, o rol de doenças foi ampliado para incluir HIV, doenças terminais, e situações de calamidade pública.
Para o professor de Direito do Trabalho da USP, Flávio Batista, a decisão do TRF-3 dialoga com uma visão contemporânea do direito: “A lei deve ser interpretada à luz da realidade social. O FGTS é uma poupança do trabalhador, e seu uso em prol da vida, da saúde e da dignidade deve ser priorizado”, afirma.
A lista oficial e os limites da norma administrativa
Atualmente, a Caixa autoriza o saque do FGTS para custeio de tratamento de doenças graves específicas, como câncer, HIV, doenças renais e mentais em estágio avançado, entre outras. No entanto, essa lista não contempla problemas de fertilidade, o que torna decisões como a do TRF-3 marcos importantes na luta por uma política mais inclusiva de saúde reprodutiva.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), inclusive, já classifica a infertilidade como uma doença, que afeta mais de 15% da população mundial em idade fértil. O Brasil, onde os tratamentos ainda são inacessíveis para a maioria, começa a trilhar caminhos jurídicos para corrigir essa desigualdade.
Saúde reprodutiva como direito humano
Em um país onde os tratamentos de reprodução assistida podem ultrapassar R$ 20 mil por ciclo, a possibilidade de acesso ao FGTS representa mais do que um alívio financeiro: é o reconhecimento do direito à maternidade como uma questão de saúde pública e de justiça social.
A decisão do TRF-3 reforça o papel do Judiciário como garantidor de direitos fundamentais, e pode abrir caminho para que outras mulheres em situação semelhante busquem acesso ao fundo em nome do direito de tentar ser mãe.
“Mais do que um precedente jurídico, essa decisão é uma declaração de que a saúde reprodutiva importa. E de que a dignidade não pode esperar”, conclui Fernandes.
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