Tratamento” que virou tortura: clínica clandestina é interditada após denúncia de maus-tratos e cárcere privado em Anápolis
Polícia Civil e Vigilância Sanitária desmantelam local que abrigava 65 homens em condições desumanas, infestados por sarna, sem higiene ou atendimento médico; dona foi presa e já era investigada por irregularidades em outro endereço.

O que deveria ser um espaço de cuidado e recuperação era, na verdade, um cenário de sofrimento, degradação e negligência. Uma clínica clandestina, situada em um bairro residencial de Anápolis, a 55 km de Goiânia, foi interditada por tempo indeterminado após uma operação conjunta deflagrada na última quarta-feira (11). O local abrigava 65 homens em situação de extrema vulnerabilidade, muitos deles diagnosticados com sarna, sinais evidentes de maus-tratos, ausência de assistência médica e em regime de confinamento forçado, segundo a Polícia Civil.
A ação foi resultado de denúncias recebidas por órgãos de saúde e segurança pública e envolveu a Vigilância Sanitária do município, Polícia Civil, Polícia Militar e o Ministério Público de Goiás (MP-GO). Segundo o delegado Ariel Martins, responsável pelo caso, os relatos de cárcere privado e tratamento desumano foram confirmados no local, que não tinha licença de funcionamento, nem autorização sanitária.
“Encontramos homens vivendo em quartos sujos, trancados, com cheiro forte de urina, infestações de sarna e roupas em estado deplorável. Muitos estavam dopados e não sabiam sequer o próprio nome. É um cenário que fere qualquer princípio básico de dignidade humana”, relatou Ariel.
Prisão e reincidência: dona da clínica já era investigada
A responsável pela clínica — que se apresentava como terapeuta, mas não possui qualquer formação técnica na área de saúde — foi presa em flagrante e liberada horas depois, após o pagamento de fiança de R$ 3.500. No entanto, segundo a Polícia Civil, ela já respondia a um inquérito anterior por irregularidades semelhantes em outra clínica, também interditada meses atrás.
O delegado Ariel revelou que a nova unidade provavelmente foi aberta para despistar os órgãos de fiscalização:
“Ela alegou ter abandonado o ramo. Mas o que vimos foi uma tentativa clara de encobrir um novo negócio irregular, usando a fachada de clínica terapêutica para manter pessoas presas, sem assistência adequada e com clara violação de direitos”, disse.
A defesa da investigada, procurada pela reportagem, informou que acompanha o inquérito e nega as acusações, alegando ausência de provas concretas até o momento.
Infraestrutura insalubre e medicamentos suspeitos
Segundo o diretor da Vigilância Sanitária de Anápolis, Daniel Soares, o local funcionava completamente à margem da legislação:
“Não havia alvará sanitário, licença da prefeitura, planta aprovada, nem qualquer controle técnico sobre os medicamentos administrados aos internos. Tudo era feito sem respaldo profissional, colocando a vida dessas pessoas em risco.”
Além das condições estruturais precárias, foram encontrados remédios administrados sem receita médica, o que configura possível corrupção de produto destinado a fins medicinais, crime previsto no artigo 273 do Código Penal.
Recolhimento de provas e laudos em andamento
A Polícia Civil recolheu amostras de alimentos, medicamentos e documentos para perícia. Também foram apreendidos celulares, cadernos de registros informais e listas de nomes dos internos. Os laudos técnicos, que ainda estão em fase de conclusão, serão fundamentais para comprovar o grau de contaminação por escabiose (sarna) e a origem dos medicamentos.
Destinação das vítimas: assistência social assume realocação
Após a interdição do local, a Secretaria Municipal de Assistência Social de Anápolis assumiu a responsabilidade de realocar os internos. Segundo o delegado Ariel, parte das famílias já foi contatada para reassumir o cuidado dos homens. Em casos mais delicados, os assistentes sociais tentarão vagas em instituições regularizadas, acompanhadas por profissionais da área de saúde mental e direitos humanos.
Responsabilização e próximos passos
A proprietária da clínica poderá responder pelos seguintes crimes:
- Cárcere privado (Art. 148 do CP)
- Maus-tratos (Art. 136)
- Exercício ilegal da profissão de terapeuta (Art. 282)
- Corrupção ou falsificação de medicamentos (Art. 273)
- Funcionamento irregular de estabelecimento de saúde
O inquérito segue em andamento na Delegacia de Proteção à Pessoa Idosa, com apoio do Núcleo de Saúde Pública da Polícia Civil. A investigação deve se estender a possíveis coautores, omissões de familiares e conivência de profissionais que, mesmo sem vínculo formal, possam ter colaborado com o funcionamento ilegal da clínica.
Reflexão e contexto
Este não é um caso isolado. Segundo dados da ANVISA e do Ministério da Saúde, o Brasil enfrenta um grave problema de clínicas terapêuticas irregulares, muitas das quais operam sem regulamentação e violam os direitos de pessoas em situação de dependência ou transtorno mental. A ausência de fiscalização contínua, aliada à fragilidade socioeconômica de muitas famílias, cria o ambiente ideal para a perpetuação de estruturas como a desmontada em Anápolis.
Organizações de direitos humanos alertam que, apesar de a internação involuntária ser permitida em casos específicos pela Lei 10.216/2001, qualquer tratamento de saúde deve respeitar os princípios da dignidade humana, legalidade e transparência institucional.
Nota da defesa
Na qualidade de advogado da proprietária da instituição, esclareço que estamos acompanhando de perto o inquérito policial instaurado. Até o presente momento, não há qualquer elemento concreto que comprove a veracidade das acusações.
A defesa tem acompanhado todas as diligências realizadas até o momento e reafirma seu compromisso com a transparência e o devido processo legal.
Assim, juntamente com a Instituição, confiamos plenamente no trabalho da Segurança Pública do Estado de Goiás e seguimos colaborando com as autoridades competentes para o completo esclarecimento dos fatos, certos de que a verdade será restabelecida ao final da investigação.
Estamos à disposição para quaisquer esclarecimentos e aguardamos com serenidade o desfecho das investigações.
Suriany Henrique, Advogados Associados
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