Demissão em massa na Comurg escancara reestruturação baseada em corte de aposentados e dívida bilionária
Companhia de Urbanização de Goiânia anuncia desligamento de 667 aposentados até 10 de julho. Decisão segue plano de recuperação aprovado em fevereiro e busca reduzir folha, mas levanta debate sobre gestão, legalidade e futuro da empresa pública endividada em R$ 2,3 bilhões.

A Companhia de Urbanização de Goiânia (Comurg) marcou para o próximo 10 de julho o desligamento de 667 servidores aposentados que continuavam em atividade — movimento inédito na história recente da empresa e que marca o ponto mais sensível da atual reestruturação em curso. O anúncio foi feito na sexta-feira (4), acompanhado de um cronograma que prevê o pagamento das verbas rescisórias em 18 de julho e as homologações sindicais em 21 de julho.
A medida integra o Plano de Recuperação e Reestruturação da estatal, aprovado em fevereiro deste ano, e representa uma guinada nos rumos da gestão da Comurg sob comando do prefeito Sandro Mabel (União Brasil). A promessa é de redução de R$ 4 milhões mensais na folha. Em contrapartida, o custo estimado dos desligamentos foi revisado para R$ 40 milhões, financiados com recursos da Prefeitura.
O plano original previa o desligamento de 692 aposentados com custo de R$ 100 milhões. Após novo cálculo jurídico baseado em tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o número caiu para 667 e o valor, para menos da metade. O STF definiu, em 2021, que servidores de empresas estatais que se aposentaram após a Reforma da Previdência (EC 103/2019) perdem automaticamente o vínculo empregatício, tornando nulo o contrato mantido após a concessão do benefício.
Segundo a Comurg, dos 667 aposentados, 415 se aposentaram após 2019 e, portanto, estariam legalmente impedidos de continuar nos quadros da empresa. Outros 252 servidores se aposentaram antes da reforma, mas também serão desligados por decisão administrativa. A justificativa: “modernização organizacional, renovação de quadros e equilíbrio fiscal”.
Recursos públicos e legalidade
O financiamento das rescisões será feito por meio de aporte direto do Tesouro municipal, dentro de um pacote mais amplo de R$ 190 milhões para a companhia, previsto no plano de recuperação. De acordo com o Portal da Transparência, até agora R$ 100 milhões já foram empenhados e R$ 98 milhões pagos à empresa pela Prefeitura de Goiânia.
Com a redução no custo das demissões, há expectativa de diminuição proporcional no repasse global, embora o novo valor ainda não tenha sido divulgado oficialmente. Além das rescisões, os recursos públicos também cobrirão precatórios, requisições de pequeno valor e déficits operacionais acumulados.
Reestruturação com base na jurisprudência
A base jurídica que sustenta os desligamentos foi firmada no julgamento do Recurso Extraordinário 1.226.111, com repercussão geral reconhecida (Tema 1.038 do STF). A Corte consolidou o entendimento de que, em empresas públicas, a aposentadoria espontânea extingue o contrato de trabalho, vedando a continuidade do vínculo remunerado.
Este entendimento eliminou a necessidade de indenizações decorrentes de ruptura contratual nos casos de aposentadoria pós-reforma, o que impactou diretamente o cálculo da Comurg.
“Estamos diante de um marco regulatório que redefine o regime de pessoal das estatais municipais. O uso desse precedente jurídico gerou economia imediata de R$ 60 milhões para os cofres públicos”, pontuou um assessor jurídico da Prefeitura, sob anonimato.
“Gratidão” ou desmonte? A nota da Comurg
Em publicação nas redes sociais, a Comurg dirigiu palavras de agradecimento aos servidores aposentados. O tom institucional da nota, porém, contrasta com o teor drástico das medidas:
“Diante do processo natural de renovação e reestruturação em curso, a Comurg se vê diante da difícil decisão de abrir mão de servidores que tanto se dedicaram à cidade”, afirma o texto.
Nos bastidores, no entanto, a decisão é lida por parte do funcionalismo como desmonte operacional, especialmente em áreas que já enfrentam déficit de pessoal.
PDV à vista e nova tentativa de redução de quadro
Além das demissões compulsórias, a Comurg estuda lançar um novo Plano de Demissão Voluntária (PDV) — o segundo em menos de três anos. O objetivo é oferecer incentivos a servidores não aposentados que desejem deixar o quadro da empresa, com bônus rescisórios ou vantagens financeiras.
A medida deve ser anunciada nas próximas semanas e mira especialmente servidores com maior tempo de casa. A empresa ainda não divulgou os critérios ou valores de incentivo.
CEI da Câmara já apontava problema, mas ficou sem efeito
A situação dos aposentados foi apontada em 2023 no relatório final da Comissão Especial de Inquérito (CEI) da Comurg, instaurada na Câmara Municipal para apurar irregularidades na empresa. O documento, assinado pelo então relator Thialu Guiotti (Avante), sugeria estudo técnico sobre o impacto da manutenção dos aposentados na folha.
Entretanto, o relatório foi arquivado sem implementação prática. Parte dos integrantes da comissão foi posteriormente contemplada com indicações para cargos no Executivo municipal, o que, na época, gerou críticas sobre aparelhamento político e interferência nas conclusões do inquérito parlamentar.
Dívida bilionária e urgência fiscal
A medida extrema vem na esteira de um cenário fiscal insustentável. A Comurg carrega uma dívida consolidada de R$ 2,3 bilhões, entre obrigações trabalhistas, precatórios e passivos operacionais. O plano aprovado em fevereiro é a primeira tentativa efetiva de saneamento financeiro após sucessivos alertas dos tribunais de contas e promotores do Ministério Público.
Segundo dados internos, a folha de pagamento da empresa representava mais de 80% do custo operacional mensal, com vários setores atuando com estrutura inchada, baixa produtividade e funções sobrepostas.
A reestruturação da Comurg marca um ponto de inflexão na política urbana de Goiânia: pela primeira vez, a administração municipal adota decisões com respaldo jurídico e objetivo fiscal claro, mas que afetam diretamente a base histórica da estatal — seus servidores mais antigos.
Se, por um lado, a medida representa avanço na modernização institucional, por outro, escancara as contradições e omissões de gestões anteriores, que mantiveram vínculos ilegais e não enfrentaram o problema. Agora, o desafio será equilibrar contas sem comprometer a capacidade operacional da empresa — e reconstruir a confiança de um funcionalismo desmobilizado.
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